07 jul O Atlético Mineiro é o time do povo
Em primeiro lugar, deve-se enfatizar o seguinte detalhe. A discussão entre as torcidas dos principais clubes brasileiros reivindicando uma origem popular é completamente infrutífera quando se olha a história.
O futebol se popularizou no país bem depois da fundação da grande maioria deles e, não à toa, os mais antigos clubes do futebol brasileiro tem em sua história o fato de serem formados pelas elites de suas cidades. No entanto, uma das maiores falácias atleticanas é reivindicar uma origem popular para o clube, muitas vezes atrelando a origem italiana cruzeirense a uma aproximação e temperamento elitista que eles, desde o início, teriam recusado.
Entre os argumentos usados para sustentar esta falácia, destacam-se dois: O fato de ter sido formado por estudantes e de ter sido criado no Parque Municipal. Todavia, ser estudante e frequentar o Parque Municipal em 1908 tinha significado bem distinto de ser “popular”.
A dissertação do sociólogo Euclides de Freitas Couto sobre o surgimento do futebol em Belo Horizonte, por exemplo, enfatiza que “A concepção urbanística moderna adotada na construção da cidade destinou parte da área central para a construção do Parque Municipal. Com sua localização privilegiada, o Parque prestava importante serviço às elites locais.” (p. 11). Neste cenário, o futebol tinha especial atenção, uma vez que “encarado pelas elites como um hábito elegante e saudável, o futebol incorporou-se ao rol das atividades mais apreciadas naquela conjuntura”. (p. 11).
Este cenário, iniciado nos primeiros anos do século XX, possibilitou o surgimento do Atlético Mineiro no seio da elite belo-horizontina. Segundo Couto, “Em 1908, quando Belo Horizonte possuía um pouco mais de 25.000 habitantes, tornava-se cada vez mais frequente a reunião de grupos de rapazes e de garotos para participarem de “peladas” de bola de meia nas proximidades do Parque Municipal. O campo poeirento com o chão duro situava-se entre a rua da Bahia e a avenida Álvares Cabral e se confundia com a avenida Afonso Pena. Desde então, as partidas de futebol, gradativamente, iam alcançando a mesma popularidade das corridas de bicicleta, realizadas nos finais de semana. Após a prática do esporte, era comum o encontro dos jovens, filhos das mais distintas famílias da cidade.” (p. 42).
O perfil elitista dos fundadores atleticanos se evidencia apenas no fato de serem estudantes. Em 1908, o Brasil era um país com população esmagadoramente fora dos bancos escolares e Belo Horizonte sequer tinha uma escola pública, uma vez que o Colégio Afonso Pena, primeiro com esta função, surgiu apenas em 1913. Todavia, Couto mostra que “os jovens fundadores do Atlético eram, em sua maioria, pertencentes a tradicionais famílias mineiras. Filhos de médicos, de advogados ou altos funcionários públicos ganharam logo o incentivo dos pais na nova e sedutora atividade esportiva.” (p. 44).
A conclusão de Couto é evidente. Naquela época, o “Parque Municipal, área destinada ao lazer, ao situar-se nas adjacências da área nobre, tornou-se um importante centro elitizado de convivência. Torna-se necessário, portanto, compreender como as formas de convivência construídas no parque mostraram-se congruentes a um novo estilo de vida que emergia no imaginário das elites.” (p. 85). O perfil social destacado dos fundadores expressava-se, por exemplo, na figura de Aníbal Machado, autor do primeiro gol do clube, formado em Direito e que alcançou na década de 30, durante o pleno vigor do movimento modernista brasileiro, a presidência da Associação Brasileira de Escritores. https://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADbal_Machado
Em que o fato de ser um clube fundado pela elite belo-horizontina desmerece a história do Atlético Mineiro? Ao meu ver em nada, apesar dos esforços de seus torcedores em apregoarem-se como um clube de origem popular, ignorando o significado do futebol na sociedade em que o CAM surgiu, muitas vezes motivado pela tentativa de associar ao Cruzeiro um passado fascista, racista e preconceituoso.
A história da Raposa, contudo, também aparece na dissertação de Couto. A fundação do clube, ainda como Palestra Itália, é motivada, segundo o autor, pela aliança entre “imigrantes italianos que aqui chegaram para trabalhar na construção da cidade.” (p. 49)
É bem verdade que na década de 20 boa parte destes imigrantes, chegados em fins do século XIX, já havia prosperado e também se destacavam no empreendedorismo da cidade com atividades comerciais como padarias, marcenarias e o setor de calçados. E desde a década de 10, “muitos deles já jogavam futebol em vários clubes da cidade, como no Yale, no Sete de Setembro, no Cristovão Colombo e no próprio Atlético.” (p. 50)
A sociabilidade italiana, contudo, era demarcada. Experiência própria dos nacionalismos do início do século XX, onde imigrantes formavam clubes, associações, organizavam festas e outras atividades para a valorização de sua cultura, já nos anos 10 “os jogadores da colônia italiana, esporadicamente, licenciavam-se dos seus clubes para disputarem partidas pelo selecionado que se denominava Scratch italiano.” (p.50).
Só em Belo Horizonte, duas outras experiências com a mesma característica já existiam quando o Palestra Itália surgiu: O Luzitano (português) e o Sírio (árabe) competiam nos torneios de futebol representando as colônias destes países que haviam em Belo Horizonte. E em 1921 os italianos criaram o Palestra Itália.
Como demonstra Couto, “o ideal de se criar um clube exclusivamente para italianos e descendentes, foi o que delineou o espírito da fundação do Palestra, em Belo Horizonte” (p. 50). E é nesta brecha que os atleticanos aproveitam para criar uma outra falácia. A de que o Cruzeiro era fascista, ignorando que o fascismo era um fenômeno que assume o poder na Itália apenas em 1922 e que os fascismos não se restringiam aos países que formariam o Eixo na 2ª Guerra Mundial, vide o próprio exemplo da ditadura varguista e o Estado Novo iniciado em 1937, com amplo apoio da elite mineira. A mesma elite de advogados, médicos e burocratas que fundou o Atlético Mineiro.
Ignoremos o fato de que os fundadores atleticanos eram filhos da elite que apenas 20 anos antes da fundação do clube explorava a mão-de-obra escrava em Minas Gerais e que a grande maioria deles certamente tinha em sua experiência pessoal passagem pelos bancos escolares brasileiros que nutriam, calcados na “Geração de 1870” com intelectuais como Silvio Romero e Nina Rodrigues, a ideia de superioridade racial que norteou boa parte do pensamento político do Ocidente na primeira metade do século XX. Isto não configurou jamais uma questão racial no Atlético Mineiro, uma vez que esta experiência jamais fez com que houvesse no estatuto do clube alvinegro a proibição de atletas negros. Contudo, no Palestra Itália não era diferente.
Apesar de restringir a participação no clube a italianos ou descendentes, a questão racial também não esteve presente nos estatutos palestrinos. A cor da pele não importava para poder atuar no clube, mas sim a ascendência nacional, o que era costumeiro em agremiações de imigrantes naquele período. Negros ou mulatos com ascendência italiana, e após três gerações de presença italiana no Estado esses existiam, não eram raros e são facilmente identificados nas fotos das primeiras equipes palestrinas.
Uma das questões que os atleticanos ignoram (como ignoram questões) ao falar sobre um possível preconceito racial na origem do Palestra Itália é a de que o racismo, enquanto pratica de exclusão no futebol brasileiro, não se aplicou em Belo Horizonte da mesma forma que no Rio de Janeiro ou no Rio Grande do Sul, locais em que as ligas chegaram a impedir a inscrição de atletas negros. A baixa representatividade de negros nos três principais clubes da capital em seus primeiros anos se justifica não por políticas de intolerância racial, mas sim pelo perfil sócio-cultural presente nas três agremiações. Na origem do futebol mineiro, a exclusão era motivada por critérios econômicos.
O Palestra Itália, contudo, não contou com benesses do governo municipal, ao contrário do Atlético-MG que, conforme aponta Couto, “após a sua fundação, o Atlético continuou a realizar seus treinos no campo do Parque Municipal. Somente em 1909 foi que a equipe ganhou seu primeiro campo”. (p. 43).
De forma semelhante ao Vasco no Rio de Janeiro, que construiu São Januário pelas mãos dos imigrantes portugueses associados ao clube, o primeiro estádio do Palestra Itália, localizado no Barro Preto onde hoje fica o Parque Esportivo do Cruzeiro, foi “construído pelos próprios operários “italianos”, possuía arquibancadas de madeira com capacidade para cerca de cinco mil pessoas” (p. 52).
Como mostra Couto, ao contrário do perfil homogêneo dos fundadores do CAM, filhos da burocracia e dos profissionais liberais abastados de Belo Horizonte, a composição dos italianos que se aproximaram do Palestra Itália desde sua fundação era mais heterogênea: “Pedreiros, carpinteiros, serralheiros, marmoristas, pintores que trabalharam no período que se estendeu da construção até as primeiras décadas de vida da capital eram majoritariamente italianos ou, pelo menos, seus descendentes. No entanto, a presença dos italianos, não se deu apenas nos segmentos menos favorecidos da população. Desde a época da construção da cidade, vários empresários e industriais italianos vindos de outras regiões de Minas Gerais, de São Paulo ou diretamente da Itália se instalaram na região da capital.” (p. 111).
A criação do Palestra, portanto, justificava-se no horizonte dos italianos também pelo entendimento desta camada da população da jovem capital de que lhes faltava espaço em outras agremiações. Couto demonstra isto, por exemplo, ao entrevistar uma senhora que participava do clube em seus primórdios e que revela que os italianos viam no clube também um espaço para socialização que nem sempre era fácil na cidade. De fato, Sílvia Bonfioli se lembra que “desde criança, sabia que todo mundo tinha raiva do Palestra, porque era clube de italianos.” (p. 113) E “para Carlos Miranda não existia um sentimento de xenofobismo contra os italianos em Belo Horizonte, mas muitos segmentos não eram amistosos com eles. Os imigrantes consideravam parte da elite belo-horizontina como competitiva e invejosa”. (p. 113.)
Nas memórias de Silvia, a hostilidade aos italianos pela elite de Belo Horizonte era tamanha que “quando surgiu o Palestra, eles fizeram de tudo para atrapalhar. Foram muitas as vezes em que os juízes roubaram para o Atlético e para o América.” (p. 114). De fato, as manobras que provocaram inúmeras crises no Campeonato da Cidade, torneio que antecedeu e hoje é equiparado ao Campeonato Mineiro, nas décadas de 20 e 30 denotam que Silvia fala de algo que se verificava na realidade.
O Palestra Itália permaneceu, no entanto, como espaço de resistência e de sociabilidade somente para italianos, em contraponto ao elitismo de América e Atlético, apenas até 1925 quando “foi retirada do estatuto do clube a cláusula que proibia a participação, de outras descendências, no quadro de atletas. A decisão foi importante na medida em que possibilitou a ampliação também do número de torcedores e sócios do clube. Acompanhando essa decisão, houve uma outra modificação que estabeleceu a mudança no nome do clube. De acordo com a vontade da “maioria”, o clube deveria ter seu nome aportuguesado e passou a se chamar Sociedade Esportiva Palestra Itália.” (p. 55) De forma clara, o Palestra mostrava disposição em se integrar com a cidade já em seus primeiros anos, contrastando com o nacionalismo isolacionista fascista que se desenvolvia na Itália após a ascensão de Mussolini.
A questão com os italianos, no entanto, era tão grave que mesmo depois da liberação da participação de não-italianos no clube, havia preconceito com as reuniões na associação. Na dissertação de Couto, a entrevistada Helena Lodi diz que “Meu pai não deixava a gente freqüentar o campo, nem ir aos bailes. Ele não gostava que nós nos misturássemos com os italianos. Eu ficava com vontade de ir. Todos os meus primos e amigos iam. Mas a sociedade não via com bom olhos aqueles que participavam daquelas coisas.” (p. 114).
A flexibilização do estatuto e o perfil heterogêneo que compunha o Palestra Itália, porém, permitiram que o clube e sua torcida se expandissem rapidamente para áreas mais vulneráveis da cidade. Não é à toa que qualquer pesquisa de torcida realizada na cidade de Belo Horizonte desde a década de 1980 capta os maiores percentuais de cruzeirenses nas classes menos favorecidas e regiões menos abastadas da cidade.
Aos atleticanos, para criar o mito da “massa” e do “clube do povo”, só resta apelar para o recurso que lhes tem mais gosta: A mentira e a inverdade! Ignorando o passado, o caráter elitista do futebol em seus primeiros tempos no Brasil e, vejam vocês, em última instância até sendo racista, como na reação a homilia do Padre Gerson na missa de aniversário do Cruzeiro em 2014.
Por: João Henrique Castro