O preconceito é de quem?


O preconceito é de quem?

“Olha só. O clube fundado por italianos fascistas reclamando de racismo agora.” Argumento prontamente rebatido com um “Como se quem foi fundado por um bando de garotos mimados que não tinham nada para fazer em um país extremamente desigual como o nosso pudesse falar alguma coisa”.

Desde o episódio de racismo que envolveu Tinga este eterno debate entre cruzeirenses e atleticanos ganhou mais força. A história nacionalista do Palestra Itália e a história elitista do Atlético Mineiro servem como pano de fundo para acusações de que o adversário não tem moral e história para questionar os preconceitos de hoje e para desqualificar a instituição adversária.

Sim. Alguns personagens dos primeiros anos do Cruzeiro tiveram ligação com o fascismo italiano como boa parte da colônia italiana. Jogadores com passagem pelo Palestra serviram a Lazio, agremiação do coração de Mussolini. Da mesma forma, Anibal Monteiro Machado, um dos fundadores do Atlético Mineiro e expoentes do Modernismo brasileiro e que chegou a ser professor do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, mesmo lugar em que leciono História atualmente, foi funcionário do Ministério da Justiça durante o governo Washington Luiz, o mesmo que disse que “questão operária é caso de polícia”. Atuava justamente no ministério que dava alvará para os movimentos sociais serem tratados a base de pancada e posicionou-se contrário à Revolução de 1930 em defesa da nefasta estrutura republicana que havia no período da nossa história conhecido como República Velha.

O tempo passou e Anibal mudou. Foi um dos porta-vozes do Modernismo a levantar a voz contra a ditadura do Estado Novo, a mesma que obrigou o Palestra Itália a mudar de nome por suas raízes italianas, e olha que poucos anos antes Vargas era profundo entusiasta do fascismo italiano a ponto de construir uma Constituição inspirada na legislação fascista. O Cruzeiro, que por muito tempo impediu que não-descendentes de italianos participassem do clube, também. Ambos acompanharam o rumo da História e, principalmente, do futebol, que após chegar ao Brasil pelas mãos e pés do aristocrata Charles Miller, ganhava cada vez mais popularidade.

O estatuto do Cruzeiro, ao contrário do que tentam alguns atleticanos fazer acreditar,  jamais proibiu a presença de negros. A única ressalva aos quadros do Palestra era de que atletas fossem italianos ou descendentes destes. O que impedia que um mestiço atuasse no clube, por exemplo? Nada, tal qual inúmeras fotos de atletas do clube já em seus primeiros anos conseguem demonstrar.

“Mas o ex-jogador Danilo disse que foi recusado no Cruzeiro por ser negro”. O caso, amigos, carece de fontes além do discurso do próprio ex-jogador. Que situações como a de Danilo aconteciam aos montes no futebol brasileiro em seus primeiros tempos é inegável, inclusive no Atlético Mineiro. O racismo estava entranhado em uma sociedade que ainda não sabia como absorver o que há pouco tempo era tratado como escravo. Institucionalmente, no entanto, a única razão que o Cruzeiro tinha para recusar Danilo e tantos outros, independente de cor, era o nacionalismo, já que ele não se enquadrava nos requisitos da época.

Independente de todo este cenário, é necessário botar os neurônios para pensar. João Gilberto sofria preconceito por tocar violão, instrumento de negro, e foi um dos primeiros a romper no país com esta lógica a partir da difusão da Bossa Nova. Monteiro Lobato falava que Tia Anastácia “subia em árvores como uma macaca”. E a avó ou o avô de muitos, personagens daqueles tempos, até hoje dizem que agradecem aos céus pela namorada do neto não ser “queimadinha” entre tantas outras demonstrações de preconceito de cor que sobrevivem até hoje.

É necessário, portanto, interpretar a História. Entender que nacionalismo, elitismo e racismo foram as marcas do futebol e tantos outros ambientes no Brasil do início do século XX e, a partir disso, parar e pensar. Deixaram de ser?

Os estádios estão sendo cada dia mais elitizados e não são poucos os que defendem a nova política de preços sem ao menos questionar a exclusão que provocam. As federações ainda hoje mantém cotas de jogadores estrangeiros e o nacionalismo fundamenta a lógica de muitas federações pelo mundo afora. Além disso, na hora de se posicionar sobre o caso Tinga o que não faltaram foram manifestações infelizes de nacionalismo ou outros preconceitos para com o povo peruano, em um tremendo exercício de falta de auto-crítica. E o racismo, infelizmente, é apenas uma das formas de preconceito que se mantém no futebol e que impedem, por exemplo, jogadores homossexuais de revelar sua orientação sexual e, mais do que isto, provocam situações como a da torcida do Sada/Cruzeiro com o jogador Michael do Vôlei Futuro.

O assunto Michael, porém, foi tratado com imensa hipocrisia. No futebol o comportamento é padrão, mas não são poucas as torcidas que generalizaram e apontaram na torcida do Sada/Cruzeiro o problema. Como são hipócritas os que criam ou manipulam informações sobre o passado em busca de denegrir de forma anacrônica o clube rival.

A hipocrisia, aliás, é o grande problema quando falamos em preconceito. Hoje existem os que querem que Monteiro Lobato saia das escolas, mas não entendem o preconceito que lançam ao passado ao qualificar o autor como racista como se tivesse escrito nos dias de hoje. Ficam em uma intensa caça às bruxas de qual clube era o mais preconceituoso, mas não percebem as inúmeras manifestações de preconceito (italiano fascista, filhinho de papai de escola particular) que a discussão contém. Dizem combater o preconceito, mas por incrível que pareça, a única coisa que conseguem fazer é ser ainda mais preconceituosos ao olhar para o outro lado.

Olham para o passado de forma torta e seguem escrevendo textos “sobre Marias e Bambis” ou rindo do rival que usa camisa rosa. E ainda tem coragem de dizer que o preconceituoso é o outro.